Afinal, o que é arte?


Na semana passada, uma discussão a respeito de uma manifestação, ocorrida no Balneário Cassino (Rio Grande, RS), agitou os ânimos nas redes sociais: no dia 19 de outubro, o letreiro "Eu amo o Cassino", localizado no final da Avenida Rio Grande, amanheceu pixado com frases sobre a falta de apoio aos artistas locais, direcionadas ao prefeito municipal.

Não vamos entrar no mérito do que foi escrito, mas sim, numa outra discussão que se iniciou: de um lado, as pessoas que defendiam o livre direito à manifestação e, de outro, quem dizia que o ato não passava de vandalismo.

Neste ínterim, as expressões "arte de verdade" e "artistas de verdade" passaram a ser utilizadas para diferenciar os grafites (em especial, os que cobrem os muros da SAC), do pixo no letreiro turístico. Os primeiros, seriam artes feitas para embelezar a cidade e valorizar espaços antes pouco explorados. Já o segundo, um crime, coisa de desocupados e marginais. Ao final do mesmo dia, o dito letreiro já estava coberto por grafites coloridos, representando atrativos do Cassino. Vale destacar que o coração do letreiro, supostamente revitalizado, abandonou a máscara que antes usava como alerta para a campanha anticovid, mas isso é outro assunto.


É aqui que cabe a nossa reflexão: a arte foi feita somente para embelezar? Arte como sinônimo de decoração feita sob uma permissão concedida. Quando a arte não nos agrada, ou quando é feita por um grupo que está à margem da sociedade, ela se transforma em vandalismo?

As expressões artísticas feitas em paredes remontam ao tempo das cavernas, quando nossos ancestrais pré-históricos desenhavam bisões e veados, desejosos por uma boa caça; danças e rituais de suas tribos, passando a homenagens aos deuses e aos mortos, até evoluir para hieróglifos, afrescos, entalhes, até chegar aos dias de hoje, com os grafites e pixos que cobrem as cidades. 

A arte sempre foi uma manifestação inerentemente humana e, como tal, reflete um tempo e uma sociedade específicos. Se há espaço para a arte decorativa, há também para a arte de protesto, para que aqueles que não são ouvidos pelo poder público se façam ouvir.

Assim como a poesia marginal, o rap e o funk são formas de arte, o pixo é a expressão da periferia, de indivíduos que são excluídos sistematicamente do debate público, aos quais estão reservados os piores empregos, as piores moradias, a menor concentração de renda, o menor acesso aos estudos, a maior e mais dura repressão da polícia, o atalho às drogas e à violência sistêmica, o racismo, o machismo, o encarceramento em massa e toda sorte de opressões.

Dizer que existe uma arte "bela e limpa", reservada ao puro entretenimento, enquanto a outra "feia e suja", que deve ser vista como crime, é esvaziar o sentido próprio da arte. É reafirmar que a arte "de verdade" é algo para poucos iniciados. É algo excludente, elitista e tacanho.

O crítico Alfredo Bosi, em seu ótimo ensaio "Reflexões sobre a Arte", nos diz que '"visões de mundo', 'espírito da época', ou, mais restritamente, ideologias de classe e de grupo, são, todos, universos de valores, complexos superestruturais que se fazem presentes e ativos na hora da criação artística.". Ou seja, nossa forma de criar está impregnada pela visão que temos da nossa própria sociedade - e de nós mesmos, dentro dela.

Para que serve a arte, afinal? Pode servir para embelezar nossa casa, nossa cidade, mas também para nos fazer pensar e para nos inserir no debate sobre nosso tempo. Para nos desacomodar, porque se faz preciso. Às vezes através de um incômodo, de uma intervenção. E quando um artista traz o estranhamento para o nosso próprio quintal, apuremos nossos sentidos: pois um simples risco numa parede pode dizer muito sobre nós.


Talvez, ao invés de nos debruçarmos sobre o que é arte - uma pergunta que tem muito material teórico, mas opera substancialmente no nível subjetivo - talvez só por um momento, a gente deva direcionar a energia usada para defender a integridade de um letreiro frio e desinteressante para o escândalo de coisas como corrupção passiva, paraísos fiscais e 600 mil mortos por covid, 14 milhões de desempregados e a fome: eis como nosso país tem sido genuinamente vandalizado, sem causar a mesma comoção.

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Por Lidiane Dutra, Juliana Blasina, Suellen Rubira

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