Na falta de um teto, um barco: afundando a síndrome da impostora

fotografia de Rachel Baran

Alou, marítimas,

Nossa chamada para publicação no primeiro volume da Marítimas segue aberta até o dia 30/01.

E eu venho aqui pra falar das pautas que destacaremos nesse primeiro volume, e também daquelas que devem se desdobrar nos volumes que ainda virão, daquelas que foram ventos fortes pra criação da Marítimas, então vou falar de várias coisas ao mesmo tempo, fazer um encontro das águas, pra seguir na metáfora nautica. Vamos lá:


Nosso primeiro volume se chama "à deriva".

Para ele, nos interessam pautas evidenciadas dutante o período da isolamento/distanciamento social na vida das mulheres: a não-tão-simples forma de (sobre) viver numa pandemia e como isso se processa e se reflete no fazer artístico da mulheres nas mais diversas formas de produção - poema, conto, pintura, ilustração, resenha, texto acadêmico, relato pessoal, crônica, fotografia.


Queremos construir uma zine plural como são as mulheres.


Eis algumas demandas a se pensar: carga mental, sobrecarga e o trabalho não remunerado - casa, filhos, agendas alheias - que sustenta toda uma sociedade, como nos alerta Federici; medidas de sobrevivência: como construir um teto pra si dentro do ambiente doméstico, como produzir em meio a tantas interrupções? - e de que teto, afinal, Virginia Woolf nos fala?


Ter pra si um teto, um quarto, um canto sossegado para sentar e escrever é uma utopia tão distante da realidade da maior parte das brasileiras, não é mesmo? Fôssemos depender disso, será que escreveríamos? Em que metáforas, então, o nosso teto se abre?

Na falta de um teto, criamos barcos e navegamos juntas por mares inóspitos até que possamos nos lembrar e nos apossar do poder que é lembrar (e lembrar corresponde a saber e sentir) que (1) a maré, nome que se dá ao movimento do mar, a maré é substantivo feminino e (2) temos parte com a lua, temos em nós a força que move os mares.

Entre os temas que nos motivaram a criar a Marítimas estão ainda (e esse primeiro, talvez, o de maior força) as dificuldades que as mulheres artistas, criadoras de conteúdo, pesquisadoras enfrentam ao buscar pra si um espaço no meios literários, artísticos e acadêmicos, meios pertencentes à hegemonia masculina-branca-hétero, meios onde o nosso lugar se mantém mediante uma árdua e constante negociação - negociação essa que muitas e muitas vezes, envolve o juízo do homem sobre nossos corpos, aparências e sexualidades. Outro incômodo motriz é a forma objetificada e artificial (os arquetipos da pura versus a puta) como as figuras femininas (ainda) surgem dentro de produções de autoria masculina: entendemos que ninguém representa melhor a alma feminina do que a(s) mulher(es) - e isso se estende também ao corpo, à voz, ao espaço e suas ramificações.


trabalho de Betty Tompskin 

A lacuna deixada pelo apagamentos das mulheres na história da literatura e da arte (e em todas as áreas do conhecimento humano) vem sido preenchida, nas últimas decadas, graças ao empenho de pesquisadoras revisionistas e reparadoras desse estrago. Hoje, nossa ausência deu lugar a uma presença que é, ainda, menor e menos valorizada do que deveria ser (e como deveria ser? em pé de igualdade). Ainda somos menos publicadas e, quando publicadas, menos destacadas pela crítica e, quando destacadas, avaliadas em critérios que vão além do tratalho produzido. As portas se abrem, sim, para muitas de nós, é verdade - mas a força que precisamos despender para isso, atravessa gênero, classe e raça.


Daí a origem da Síndrome de impostora que nos morde as canelas e torna difícil de admitir que somos boas (!) o suficiente. Há estudos que apontam que as meninas, a partir dos 5 e 6 anos, já têm a sensação de pertencer a um grupo inferior, conforme matéria do EL PAÍS: "essa falta de autoestima e confiança em seu êxito, dificulta sua trajetória”, diz a doutora Coral Herrera, uma das especialistas consultadas na matéria em questão.


Isso se dá, não só via exercício de poder consciente daqueles que controlam as portas, mas por uma estrutura de violência muito mais intrincada que sustenta e organiza a sociedade em que estamos todes inserides. Matérias de jornais de 2020 destacam a baixa produtividade acadêmica das mulheres já no início do isolamento - nenhuma alteração registrada no que se refere à autoria masculina. Levantamento realizado pelo projeto Parent in Science, em abril de 2020, com mais de quatro mil participantes, revela que apenas 13% das estudantes de pós-graduação que têm filhos estavam conseguindo trabalhar neste período de distanciamento social compulsório.


Enquanto isso, o índice de violência contra a mulher no mesmo período aumentou.

"Violência doméstica em tempos de confinamento obrigatório: a epidemia dentro da pandemia" é o título de um estudo que mapeia e analisa os dados de feminicídio e violência doméstica no primeiros meses de 2020 e conclui: os homens ainda representam à vida das mulheres uma ameaça maior que qualquer vírus.


Estamos cansadas (o famoso #soudeexaustas perdeu a graça).

Cansadas de negociar um espaço tão frágil quanto o da mulher artista nos meios criados e dominados por eles; cansadas do pouco destaque dado à temas que atravessam nossa existência, nossos corpos, nosso dia a dia.

Cansadas de responder em sussurros à pergunta de Spivak:

pode o subalterno falar? PODE desde que grite em coro.


Uma zine feminista é por si um ato de subversão e resistência contra a hegemonia dominante (branca, masculina, hetero).

Abrir às mulheres espaços de pertencimento.

Assim surgiu a Marítimas: um espaço de resistência e existência feminista.

mais Betty Tompskin por motivo de: sou muito fã

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- a maré quando vem ninguém segura.


Um beijo, Juliana Blasina

coeditora da Marítimas

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